Olá! Como você está? Nesta edição, vou comentar sobre as peças Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, O Céu da Língua, In on It, Macacos e Senhora dos Afogados.
AVENIDA PAULISTA, DA CONSOLAÇÃO AO PARAÍSO (2025), de Caetano Galindo, Felipe Hirsch, Guilherme Gontijo Flores e Juuar
O título em si mesmo já dá conta de toda a sinopse: iremos assistir a um espetáculo sobre a Avenida Paulista - o espaço mais icônico da capital paulista, não só por ter sido a residência dos barões do café e seu primeiro centro financeiro, como também por seu protagonismo na vida cultural e noturna da cidade. Mais especificamente, …da Consolação ao Paraíso versa sobre as pessoas que passam diariamente pela avenida. Assim, a melhor definição para o novo espetáculo dirigido por Felipe Hirsch (com a co-direção de Juaar) seria a de uma “peça-documentário”.
O espetáculo faz parte das comemorações do sexagésimo aniversário do Teatro Popular do Sesi. A princípio, a ideia proposta pela instituição ao diretor Felipe Hirsch, era que ele remontasse Avenida Dropsie, uma adaptação dos quadrinhos de Will Eisner, já que aquele espetáculo, por sua vez, está completando 20 anos. Por mais que aquela peça tenha sido um sucesso estrondoso, o diretor, no entanto, optou por produzir algo novo.
Para a nova empreitada, o diretor promoveu uma pesquisa filmando, gravando, fotografando e ouvindo as histórias de seus transeuntes. Ele somou estes materiais a sua própria experiência enquanto um morador vizinho da Paulista, além das contribuições do próprio elenco do espetáculo - tudo isso organizado pelas mãos de Caetano Galindo, Guilherme Gontijo, o próprio Felipe e Juaar.
Trata-se de uma dramaturgia fragmentada, que vai e volta entre o presente, o passado distante, o passado recente e um futuro distópico. Por vezes, temos pequenas crônicas cotidianas de coisas que acontecem na Paulista; outras vezes testemunhamos sequências temáticas - um dos momentos mais deslumbrantes do espetáculo é quando chove por 18 minutos e o elenco vive diversas situações enquanto se encharca; também há pequenos fragmentos homenageando personalidades como Ricardo Corrêa (interpretado por Verónica Valenttino), que ficou conhecido como o Fofão da Augusta, ou Assis Chateaubriand (Georgette Fadel); alguns personagens voltam a aparecer e quase constituem uma narrativa linear como o homem que perdeu o emprego (Marat Descartes) e uma jovem interiorana (Helena Tezza) que se mudou para a capital para estudar artes cênicas.
Para embalar seu caleidoscópio, Felipe convidou 15 compositores para elaborar canções inéditas, são eles: Alzira E., Arnaldo Antunes, DJ K., Kiko Dinucci, Jéssica Caitano, Juçara Marçal, Maria Beraldo, Maria Esmeralda, Maurício Pereira, Negro Leo, Nuno Ramos, Rodrigo Campos, Rodrigo Ogi, Romulo Fróes e Tulipa Ruiz. Seja por meio de metáforas, seja de maneira explícita, as composições versam sobre as desigualdades sociais, a exploração no trabalho, os desencontros e o cotidiano estafante dos deslocamentos pela capital.
A dupla de cenografia, Daniela Thomas e Felipe Tassara (parceiros de longa data de Hirsch), desenharam como cenário um prédio de três andares remetendo ao Conjunto Nacional para enquadrar o mosaico de Avenida Paulista. Com mais de 10 metros de altura, a estrutura de cair o queixo abriga os músicos que aparecem pelas diversas janelas. Cenas inteiras se passam dentro dos apartamentos seja para ressaltar a solidão das personagens, seja para trazer o calor humano das festas em apartamentos apertados.
E por fim, temos o elenco. Este talvez a grande estrela do espetáculo, justamente por não ter um artista que se sobressaia entre eles. Temos intérpretes que vieram da palhaçaria, de correntes do teatro épico, dos Ultralíricos, do antropofágico Oficina, divas do teatro musical paulistano. Com uma variedade de experiências, chega a ser impressionante o quão equalizada a trupe está: os artistas funcionam como um coro, movem-se em unidade, tornam-se pessoas banais e, justamente por isso, interessantíssimas. Se em algum momento um deles se destaca para nos arrancar risadas ou suspiros, logo depois o ator ou a atriz volta para o pano de fundo. Como já citei alguns nomes (e fiz questão de nomear todos os compositores), aqui vai o elenco completo de Avenida Paulista: Amanda Lyra, Aretha Sadick, Fernando Sampaio, Georgette Fadel, Gui Calzavara, Helena Tezza, Jocasta Germano, Kauê Persona, Lee Taylor, Marat Descartes, Roberta Estrela D’Alva, e Verónica Valenttino. E na banda: Fábio Sá, Heloisa Alvino, Julia Toledo, Lello Bezerra, Negro Leo e Thalin.
Quem lê sobre essa dramaturgia difusa que se estende por 2h40; quem vê as fotografias das cenas, muitas vezes envoltas por escuridão ou pelo cinza do cenário; quem fica sabendo que a temática abordada pelo espetáculo fala sobre a convivência com a violência, o descaso, o medo e a falta de dinheiro; pode achar que esta é uma obra, na melhor das hipóteses, melancólica e, na pior, lúgubre e pessimista. Mas não se engane, este é um espetáculo com E maiúsculo - eu já te falei do cenário de cair do queixo, da sequência deslumbrante na qual chove sobre o palco. Quem se dispuser a testemunhar Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, será surpreendido pela pulsão de vida que lateja em todas as cenas. Porque, no fim das contas, Felipe Hirsch e sua trupe nos deram a oportunidade rara de simplesmente parar o que estamos fazendo e contemplar um dos ambientes mais caóticos do nosso país e, com calma, abrir os olhos para o quão fascinante ele pode ser.
SERVIÇO
Onde? Teatro Sesi (Av. Paulista, 1313 - Bela Vista, SP)
Que dias? Quinta à sábado, às 20h. Domingo às 19h
Até quando? Até 29 de junho.
Quanto custa? É gratuito!
Onde posso reservar os ingressos? No website do Sesi. Os ingressos para cada final de semana são disponibilizados toda segunda-feira às 8h

O CÉU DA LÍNGUA (2024), de Gregório Duvivier
O novo monólogo de Gregório Duvivier é descrito como uma mistura de Stand Up com poesia falada e dramaturgia, ou como ele prefere: “Comédia Poética”. Formado em Letras pela PUC-Rio, o que o ator e dramaturgo acaba promovendo para seus espectadores é uma verdadeira aula de Português. Durante a peça, ele traz curiosidades sobre a origem das palavras e da linguagem, sobre a métrica utilizada em poemas, sobre a variação linguística nos modos de falar, além de compartilhar impressões próprias sobre a sonoridade das palavras.
É bem verdade que o tema faz com que a dramaturgia esgote rapidamente seus recursos para versar sobre ele. Muitas vezes o tom segue o de uma palestra; diversas vezes soa como uma indignação (exagerada para obter efeitos cômicos) muito comum de ser encontrada em redes sociais: “É um absurdo terem removido o trema no novo acordo ortográfico!” E já que estou pontuando primeiro os aspectos negativos da dramaturgia, também achei que o recurso de colocar um final falso na peça não deu tão certo - seja porque o “primeiro final” me pareceu mais bonito e esperançoso que o “final verdadeiro”; seja porque a peça se estende por pelo menos mais dez minutos depois do final falso repetindo os mesmos recursos dramatúrgicos ouvidos anteriormente, o que acaba cansando um pouco.
Ainda assim, nenhum ponto negativo citado anteriormente desabona a experiência de assistir a O Céu da Língua. Trata-se de um espetáculo muito engraçado, divertido e também inteligente. Inteligente no sentido de ser uma obra que aguça a nossa vontade de aprender coisas novas. A proposta do monólogo é mostrar para seus espectadores como a língua Portuguesa, em especial sua variação Brasileira, é muito rica e interessante. E ao final, percebemos que seu propósito foi cumprido com primazia.
A beleza de O Céu da Língua não está somente na perspicácia de seu dramaturgo e intérprete, como também na encenação assinada por Luciana Paes. A direção leva o espetáculo a diversas variações de ritmo e humor: passeando entre o cômico e o belo, entre o encanto e o espanto. A peça é acompanhada pelo violoncelista Pedro Aune (também responsável pela direção musical) e por projeções realizadas em um retroprojetor e operadas por Theodora Duvivier (também assistente de direção e irmã de Gregório). O uso do retroprojetor, ao meu ver, foi uma das coisas mais interessantes da encenação: trazendo um caráter bastante artesanal e até brechtiano (coisa que as projeções digitais não conseguem imprimir). Esta ferramenta didática que parecia ter caído em desuso com o advento da digitalização das salas de aula é um recurso que também foi utilizado de maneira muito interessante pelo espetáculo Restinga de Canudos (comentado na edição passada), da Cia do Tijolo, e que eu adoraria ver em outros espetáculos teatrais devido ao seu potencial criativo pouco explorado.
O monólogo “O Céu da Língua” iniciou sua temporada no Teatro Sérgio Cardoso 01 de maio e faz sua última apresentação neste teatro no dia de hoje, 25 de maio às 16h. Os ingressos estão esgotados.
IN ON IT (2000), de Daniel MacIvor
Em comemoração aos 15 anos da primeira montagem brasileira, que estreou em março de 2009 no Rio de Janeiro, a peça In on It foi remontada por seu diretor Enrique Diaz com Emílio de Mello e Fernando Eiras reprisando seus papeis. Já em 2009 o espetáculo foi bastante elogiado pela crítica e recebeu o carinho do público, sendo transferido para São Paulo em 2010. Agora, eles retornam para uma temporada na capital paulista sediada pelo Tucarena - já durante a nova temporada carioca Enrique defendeu o papel de Fernando em algumas sessões; agora em São Paulo, ele assumiu o papel no decorrer de toda a permanência de In on It na cidade.
A trama, a princípio, pode parecer confusa: ela mescla três narrativas e é carregada de metalinguagem. Na primeira delas, assistimos a história de Ray, um homem qualquer que vê sua vida desmoronar: ele acaba de descobrir uma doença terminal, sua esposa o abandonou para ficar com outro. Na segunda narrativa, o dramaturgo (Enrique Diaz) da peça que conta a história de Ray discute aquele texto com um parceiro de longa data (Emílio de Mello). Por fim, na terceira narrativa, retornamos ao passado para saber como aqueles dois homens se conheceram, se apaixonaram e que fim deu aquele relacionamento.
É lógico que, eventualmente, as três narrativas convergem em um único ponto para amarrar a trama. Enquanto isso não acontece, percebemos aos poucos que o conflito de cada plano diz respeito ao relacionamento daqueles dois homens: no passado, os encontros e desencontros dos protagonistas servem tanto para trazer a fagulha inicial da relação como também para miná-la; no presente, o ressentimento pelo final do relacionamento compromete o processo de montagem da peça; no fim das contas, a história de Ray parece de alguma forma ecoar a dor sentida por seu dramaturgo.
In on It é uma peça que versa sobre temas vividos por todos nós: a solidão, o luto, o fim de um grande amor e o que nós fazemos para processar essas emoções. É justamente por isso que apesar da sobreposição dessas três linhas narrativas que correm em paralelo, a história do espetáculo é facilmente apreendida pelos espectadores - e também, é claro, devido a carpintaria de qualidade do texto de Daniel MacIvor, pela direção precisa de Enrique e a execução apurada dos atores em cena.
Uma das coisas mais interessantes de In on It é justamente seu jogo teatral. A metalinguagem não se restringe apenas a peça-dentro-da-peça e a conversa que o dramaturgo tem sobre ela, ela vai além: tanto Enrique como Emílio se dividem no papel de Ray e das demais personagens desse plano narrativo; ao mesmo tempo, durante a discussão sobre a peça-dentro-da-peça, eles abrem o diálogo para o público, tentando convencer os espectadores a se aliarem a um deles. As mudanças de luz que marcam a passagem de um plano narrativo para o outro, o desenho de som que nos ajuda a imaginar objetos que não estão em cena, tudo colabora para ressaltar o fazer teatral - e talvez seja justamente a noção de que tudo é faz de conta, um tipo de brincadeira, que nos permitimos emocionar com a história que vemos desenrolar.
Diante de um texto preciso e limpo, Enrique Diaz optou por ser fiel ao dramaturgo em sua direção. Como indicam as rubricas do texto (publicado pela Cobogó), ele usa apenas duas cadeiras, o cenário é praticamente inexistente (desnudando o próprio teatro no qual é encenado) e os figurinos são simples. Assim, sobra espaço para trabalhar com os atores e sua interpretação dos diálogos - afinal, ambos são os veículos principais por meio dos quais se conta a história de uma peça.
É justamente esse minimalismo, assim como a evidência do fazer teatral, que faz com os atores precisem ter desenvoltura para transitar entre personagens distintos e pelos planos narrativos. Por isso, seria necessário não só conhecer bem o texto, como também o colega de cena - algo que requer intimidade. Nesse sentido, os anos de estrada, seja com a peça ou com outros projetos, fizeram com que Emílio e Enrique pareçam bastante à vontade na execução do espetáculo; a sintonia entre os dois é evidente. Assim, é delicioso vê-los beliscando um ao outro, se entregando à paixão, se apoiando e nos incluindo no processo - afinal, o que seria o teatro se não o encontro entre duas pessoas e uma boa história pra contar?
SERVIÇO
Onde? Tucarena (R. Bartira, 347 - Perdizes, SP)
Que dias? Sexta e sábado, 21h, domingo, 18h.
Até quando? 22 de junho.
Quanto custa? R$60,00 (meia-entrada) e R$120,00 (inteira)
Onde posso comprar os ingressos? No Sympla ou na bilheteria do teatro.
MACACOS (2016 - ), de Clayton Nascimento [Cia. do Sal]
Escrito, dirigido e interpretado por Clayton Nascimento, o monólogo Macacos é um verdadeiro “tour de force”. Não apenas por sua duração, que chega a três horas ao todo (nas apresentações da 13ª Flup, foram quatro); como também devido a sua proposta: evidenciar os eventos históricos que permitiram o desenvolvimento do racismo brasileiro e, em última instância, cristalizaram uma sensação de permissividade na branquitude de forma que ela se sentisse no direito de proferir xingamentos racistas, tais como o que intitula o espetáculo (ou fazer pior).
A concepção do monólogo surgiu a partir de dois eventos. O primeiro ocorreu em 2014, durante uma partida de futebol entre Grêmio e Santos nas oitavas de final da Copa do Brasil: o jogo precisou ser interrompido porque a torcida gremista estava proferindo xingamentos racistas contra o jogador Aranha, goleiro do Santos - Clayton assistiu ao jogo em sua TV enquanto morava na residência universitária da USP. Já o segundo foi o assassinato do menino Eduardo de Jesus, aos seis anos de idade: o garoto brincava no quintal de sua casa quando dois policiais militares invadiram o terreno e atiraram nele.
O segundo episódio é narrado no decorrer do espetáculo, dando um enfoque para a luta em busca de justiça realizada por Terezinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo. Sabendo que o espetáculo narraria um episódio de sua vida, ela assistiu ao monólogo na estreia, em setembro de 2016 - quando o texto ainda tinha uma duração de apenas 15 minutos. Clayton uniu forças com Terezinha e, desde então, ela acompanha todas as apresentações para falar com o público após os aplausos. A popularidade que o espetáculo obteve durante a retomada após a pandemia fez com que o caso fosse reaberto pela Justiça.
O projeto de Macacos fica evidente durante um quadro nomeado “Uma aula que você não teve”. É nela que Clayton discorre sobre a história brasileira evidenciando os eventos que acabaram por formar a estrutura do racismo brasileiro. Trata-se de uma pesquisa realizada pelo artista durante seu mestrado em História do Teatro na ECA-USP e ainda assim sua apresentação não é academicista: o ator opta por uma abordagem bem humorada, com algumas piadas salpicadas pela narrativa, e uma conversa direta com a plateia - o fato dos espectadores se deliciarem ao participar dessa “aula” demonstra o domínio que Clayton tem sobre o público.
Nesse sentido, o “tour de force” também diz respeito ao desempenho de Clayton ao interpretar seu texto. Normalmente, o que mais impressiona aos espectadores é sua capacidade de memorizar um texto tão longo, além de realizá-lo com pouquíssimas pausas (todas muito pequenas para aproveitar um gole d’água bem merecido). Olhares e ouvidos mais apurados também irão reparar o trabalho corporal e vocal de Clayton ao interpretar uma variedade de personagens e conduzir os ritmos do espetáculo - não há música acompanhando, o cenário é um pano de fundo preto e o figurino é um shorts de tactel; tudo é veiculado por meio do corpo e da voz de seu intérprete.
Para quem tem interesse em conhecer o monólogo, a editora Cobogó publicou um livro com o texto em 2022 (que você pode adquirir aqui). Entretanto, a edição já se encontra defasada já que, desde então o texto segue recebendo revisões e novas elaborações por Clayton. A versão que assisti este mês no Sesc Bom Retiro suprimiu algumas cenas presentes no livro, ao mesmo tempo em que adicionou novos episódios e modificou o desenlace. Isso acaba explicando a passagem que Macacos fez de 15 para 180 minutos de duração: sua existência é fruto de uma pesquisa constante que Clayton Nascimento desenvolve acerca do racismo brasileiro desde as origens. Uma pesquisa que esperamos que possa encontrar seu fim histórico em breve.
O monólogo “Macacos” iniciou sua temporada no Sesc Bom Retiro no dia 10 de abril, onde permanece em cartaz até 12 de junho. Os ingressos estão esgotados.
SENHORA DOS AFOGADOS (1954), de Nelson Rodrigues [Teatro Oficina, 2025]
Talvez uma das montagens mais interessantes desse ano, ao lado de Avenida Paulista, esta peça era visada por Zé Celso para ser encenada pela trupe do Oficina desde a década de 1980. Em 2022, durante a temporada de Fausto, o diretor voltou a considerar a possibilidade de levar uma versão sua de Senhora dos Afogados para o palco. Porém, sua morte em julho de 2023 acabou deixando o projeto sem um futuro certo. Ocorre que, durante o velório do diretor, seu viúvo e ator da companhia, Marcelo Drummond, convidou a cineasta Monique Gardenberg para realizar o sonho de Zé; dando origem ao que foi visto no palco do Sesc Pompeia e que “irá para casa” sexta-feira que vem, quando a montagem estreará na sede da companhia.
Assim, antes de ser uma exploração do universo rodrigueano, o espetáculo promove uma homenagem a Zé Celso na qual o mestre antropófago da companhia é, enfim, deglutido por ela. Monique, por exemplo, deve sua estreia como diretora teatral a Zé Celso: ela se aproximou do diretor em 1994, quando ele estava internado por problemas do coração; ao perguntar para Marcelo Drummond como ela poderia ajudar, ele teria respondido que a melhor maneira era colocando-o de volta nos palcos. Assim, Monique passou a produzir peças da companhia. Eventualmente, foi a vez de Zé Celso retribuir a acolhida: quando a irmã da cineasta faleceu, ele a estimulou a viver o luto por meio da arte, afirmando que ela estava pronta para assumir a direção nos palcos.
Monique também trouxe de volta para a trupe pessoas que tiveram passagens marcantes pelo Oficina e eram importantes para seu diretor, em especial as atrizes: Leona Cavalli, que interpreta dona Eduarda; Regina Braga, no papel de dona Marianinha; Giulia Gam, Cristina Mutarelli, Michele Matalon e Muriel Matalon, que fazem parte do coro de vizinhas. Elas se juntam a Marcelo Drummond (interpretando Misael); Kael Studart (Paulo) e Lara Tremouroux em sua estreia nos palcos interpretando Moema. O coro de prostitutas, interpretado pelos demais atores e atrizes da companhia, se expandiu para incluir michês, vendedores ambulantes e banhistas - juntos, eles refletem a predileção de Zé Celso por coros e sua inclinação em dar voz aos marginalizados.
Na trama de Senhora dos Afogados, a família Drummond vive em uma casa a beira-mar sendo influenciada pelas marés. No mesmo dia em que Misael e Eduarda comemoram 19 anos de casados, eles velam a memória de uma de suas filhas mais novas que se afogou no mar e cujo corpo está desaparecido; além disso aquele dia marca o assassinato de uma prostituta do cais, atribuido a Misael. Trata-se de uma tragédia rodrigueana: aos poucos vemos uma família tradicional, com trezentos anos de história, desaparecer como se fossem pegadas na areia lavadas pelo mar.
Ainda que os arquétipos dos personagens venham de tragédias gregas - Moema, por exemplo, tem sua inspiração em Elektra - a tragédia dessa história não se dá por desígnios divinos, mas pelos impulsos do inconsciente das personagens. Elas se conduzem ao fim trágico por não conseguir dominar seus desejos, ciúmes ou ressentimentos.
A encenação utilizava toda a arena do Sesc Pompeia, fazendo uso de ambas as arquibancadas e com o elenco passeando por entre os corredores e as galerias ao entrar e sair de cena. O cenário é simples: de um lado, um espelho e uma cama indicam o quarto de Misael e Eduarda; de outro lado, o mar - representado por fitas brancas nas quais a imagem das ondas e de uma ilha mítica são projetados, além de uma pequena faixa de areia branca, que avança por todo o palco durante o segundo ato como se o mar se aproximasse para tragar suas próximas vítimas.
É interessante reparar como a encenação de Monique evoca as características de um espetáculo do Oficina, ao mesmo tempo que mantém sua assinatura enquanto diretora. Sua direção procura sugerir símbolos e paralelismos para que os espectadores possam, aos poucos, se dar conta do que está em jogo, nos afundando lentamente nas intrigas da família Drummond. Ainda mais interessante do que os elementos cênicos, o que dá gosto de testemunhar nesta montagem é o trabalho do elenco, majoritariamente feminino e bastante afinado - as atrizes dominam a cena, dando os contornos necessários para os impulsos, as rivalidades e o sentimento de não-pertencimento de suas personagens.
No entanto, a única coisa que me incomodou foi ler na ficha técnica do espetáculo um crédito para a realização de “Vídeo I.A.”. O uso de Inteligência Artificial [De]Generativa por uma companhia teatral que levanta as bandeiras da valorização dos artistas da cena e da causa ambiental (ambas materializadas na luta pela criação do Parque do Rio Bixiga) é contraditório - afinal, trata-se de uma “ferramenta” extremamente poluente e desenvolvida em cima do roubo dos trabalhos de artistas. Um dia pretendo escrever um texto dedicado ao assunto das IAs e seu uso por artistas de teatro, mas, por hora, basta o puxão de orelha.
“Senhora dos Afogados” iniciou sua temporada no Sesc Pompeia no dia 25 de abril, onde permaneceu em cartaz até 11 de maio. Como de costume, a peça será transferida para a sede da companhia. A estreia da nova temporada ocorrerá na sexta-feira que vem, dia 30.
SERVIÇO - Temporada no Oficina
Onde? Teatro Oficina (R. Jaceguai, 520 - Bela Vista, SP)
Que dias? Sexta, sábado e segunda às 20h; domingo às 18h.
Até quando? 28 de julho.
Quanto custa? R$60,00 (meia-entrada) e R$120,00 (inteira)
Onde posso comprar os ingressos? No Sympla ou na bilheteria do teatro.

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Até a próxima! 👋
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